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A possibilidade de cobrança de ISSQN dos serviços de streaming pela Internet

A nova e polêmica possibilidade de tributação dos serviços de streaming

A possibilidade de cobrança de ISSQN dos serviços de streaming pela Internet

A nova e polêmica possibilidade de tributação dos serviços de streaming

Divulgado 10:22 do dia 27 de Abril de 2020

Imagen do Artigo A possibilidade de cobrança de ISSQN dos serviços de streaming pela Internet

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Resumo

Assim como os primeiros telefones celulares quando foram lançados, era simplesmente inimaginável no decorrer de vinte anos, antes do surgimento dos smartphones, que fossem existir aparelhos que num equipamento apenas pudessem até mesmo realizar ligações telefônicas. A evolução tecnológica já dava demonstrações de que impressionaria cada vez mais. Dessa forma, quem imaginaria há menos de quinze anos ser possível assistir a filmes com maior qualidade de som e imagem sem ocupar toda a estante de casa com as antigas fitas de vídeo cassete, sendo substituídas pelo DVD – Digital Vídeo Disco. A seguir a capacidade dos discos de DVD foi aumentada pela tecnologia Blu-ray, e saltando mais ainda no futuro, quem imaginaria há menos de sete anos ter disponível em casa o conteúdo de uma locadora física de filmes sem ocupar tanto espaço nas estantes, sem a preocupação de rebobinar fitas ou cuidar para não arranhar os delicados “disquinhos”, podendo acessar seu conteúdo agora a qualquer hora e em qualquer lugar, inclu- sive em smartphones por meio de uma conta na internet de acesso tão simplista quanto o de uma conta de correio eletrônico. Essa disponibilização de serviços que no Brasil ocorre há pelo menos cinco anos teve sua atividade colocada em foco pela legislação tributária com alteração da legislação federal através da Lei Complementar no 157/2016, causando alvoroço em seus aficionados consumidores, e mais ainda nas administrações tributárias municipais na maioria do país, principalmente das capitais. Merecem então análise as devidas conceituações doutrinárias e legais desse mercado, à luz do Direito Tributário.

 

1. Introdução

Desde que entrou em vigor, a Lei Complementar no 157/2016 causou alvoroço nos municípios Brasil afora. O motivo de tanto barulho encontra-se no anexo 1.09 da lei complementar que possui somente sete artigos, na qual referido item acrescenta a nova e polêmica possibilidade de tributação dos serviços de streaming de áudio e vídeo, dentre outros conteúdos, sendo seus ícones mais populares o Netflix, YouTube e o Spotify.

Segundo aquele anexo, será tributada agora a “disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio e vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade dos livros”, e ainda ressalvadas aquelas distribuições de conteúdo sujeito à tributação do ICMS.

A evolução digital e o surgimento de novas tecnologias fizeram com que a boa e velha locadora de vídeos fosse transportada para o universo da internet.

Hoje, a pessoa que quiser alugar um filme pode assim fazê-lo de forma permanente e ter o vídeo à sua disposição para quando tiver oportunidade de assistir, podendo pausar, assistir, criar listas de conteúdo do material completo, mediante o pagamento de mensalidade.

Assim, pareceu haver extinguido aos poucos as locadoras de vídeo, o que ainda não ocorreu, e é bem possível que não ocorrerá pelo fato de os estúdios ainda deterem grande parte da produção cinematográfica, além dos direitos de distribuição em salas de cinema ao redor do mundo.

Contudo, os serviços de streaming têm se notabilizado pela grande produção própria e de boa qualidade que têm demonstrado, haja vista o Netflix trabalhar com conteúdo de produção própria, como séries que são verdadeiras novelas americanizadas, e documentários temático-históricos ou de personalidades, motivos estes que fizeram seus números de usuários assinantes dispararem.

Logo, o Estado, ao exercer seu jus imperii, viu nesse novo nicho de mercado uma possibilidade de estender seu alcance, e já que a Lei Complementar no 123/2006 não havia previsto a modernidade do streaming pela internet, teve que a legislação adequar-se para assim prever.

Entretanto, muita controvérsia existe e poderá ainda existir quando os entes federados municipais começarem a lançar o crédito tributário para empresas que se tornaram gigantes mundiais no setor, como Netflix e Spotify.

Dúvidas surgirão aos montes e é bem capaz que muito em breve a questão seja decidida pela Suprema Corte brasileira, haja vista que, dentre as análises da constitucionalidade do novo regramento, o conflito prévio verificado mostra-se basicamente de natureza civil, ou seja, se os ditos serviços representam obrigação de dar, ou obrigação de fazer, ou mesmo a exata base de cálculo do tributo, ou ainda seus aspectos material e temporal.

2. O conceito de serviço à luz da doutrina e legislação do Direito Civil, do Direito do Consumidor e do Direito Tributário

Antes de adentrar na análise do que pretende abordar o presente artigo científico, necessário se faz uma abordagem a respeito do conceito de serviço e/ou prestação de serviços, delineando as nuances debatidas na doutrina e na legislação disciplinadora das relações privadas e, notadamente, na relação de consumo.

Ressalte-se que a doutrina civilista não traz um conceito de serviço, mas o faz de forma oblíqua ao conceituar as obrigações de fazer.

Nesse rumo, Melo (2008, p. 37) ensina sobre a segunda e mais corriqueira corrente:

O cerne da materialidade da Hipótese de Incidência do imposto em comento não se circunscreve a “serviço”, mas a uma ‘prestação de serviço’, compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de fazer, de conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado

Desde o regramento civilista de 1916, ao atualizado Código Civil de 2002, que doutrinadores de escol como Maria Helena Diniz, em sua doutrina de Teoria Geral das Obrigações, conceitua a obrigação de fazer atrelada à prestação de um serviço, ou seja, de plano, afirma Diniz (2013, p. 117):

A obrigação de fazer é a que vincula o devedor à prestação de um serviço ou ato positivo.

Prossegue a professora Maria Helena Diniz (2013, p. 117):

 Essa relação obrigacional tem por objeto qualquer comportamento humano, lícito e possível, do devedor ou de outra pessoa à custa daquele, seja a prestação de trabalho físico ou material (p.ex. o de podar roseiras em um jardim, o de construir uma ponte, etc), seja a realização de serviço intelectual, artístico ou científco (p.ex. o de compor uma música, o de escrever um livro etc), seja ele ainda, a prática de certo ato ou negócio jurídico, que não confgura execução de qualquer trabalho.

Ainda em busca de respaldar ou de refutar a cobrança de ISSQN dos serviços de streaming pela rede mundial de computadores, merecem análise as subdivisões através das conceituações doutrinárias das obrigações de fazer.

Dessa forma, e subdividindo as obrigações de fazer por sua natureza, prossegue a civilista Maria Helena Diniz (2013, p. 117), delimitando-as em obrigações de natureza fungível e em obrigações de natureza infungível.

Obrigação de fazer de natureza infungível, por consistir num facere que só pode, ante a natureza da prestação ou por disposição contratual, ser executado pelo próprio devedor, sendo portanto, intuitu personae, uma vez que se levam em conta as qualidade pessoais do obrigado. A pessoa do devedor é essencial, pois o credor pode exigir que a prestação avençada seja fornecida por ele, visto que celebrou o negócio em atenção aos seus requisitos pessoais; logo, não está obrigado a aceitar substituto. [...] Obrigação de fazer fungível, que é aquela em que a prestação ou ato pode ser realizada indiferentemente tanto pelo devedor como por terceiro, caso em que o credor será livre de mandar executar o ato à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível por perdas e danos. Tal se dá quando o objetivo do credor foi obter a prestação do ato, sem levar em conta as qualidades pessoais do obrigado.

A subdivisão acima deixa claro que, quando a doutrina busca sedimentar o conceito de uma obrigação de fazer, esta assim o faz com vistas muito mais a diferenciá-las das obrigações de dar, posto que qualquer semelhança no âmbito do Direito Civil, fundamento legal do Direito Privado, teria grande impacto nas relações entre particulares.

Na mesma toada pode-se inferir que a doutrina civilista exemplificou com diversos tipos de “prestações de serviços” a obrigação de fazer do que buscou imprimir de fato uma conceituação de “serviços”, sendo inúmeros os exemplos pedagogicamente doutrinários para dar conceito a tais obrigações.

Acerca do formato conceitual de “obrigação de fazer”, ínsito ao fato gerador do ISSQN, cujos contornos definidores devem ser buscados na órbita do Direito Privado, ensina Regina Helena Costa apud Sabbag (2008, p. 1153-1154)

Impõe-se definir o que deve ser entendido por serviço de qualquer natureza, cuja prestação é tributada pelo imposto em foco. Trata-se mais uma vez, de conceito que há de ser buscado no direito privado. Com efeito, o Código Civil, ao cuidar do assunto, estatui que a prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou à lei especial, reger-se-á por suas normas (art. 593) e que ‘toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição’ (art. 594). Trata-se pois de uma obrigação de fazer. 

Nesse sentido também caminhou grande parte dos doutrinadores do próprio Direito Tributário, admitindo assim as conceituações via reflexa à definição do Direito Civil dada às obrigações de fazer.

Por seu turno, e já adentrando a matéria tributária, rememorou Sabag (2008, p. 373) “serviços: são bens imateriais, de conteúdo econômico, prestados a terceiros” numa tentativa de dispor sobre o conceito, fazendo hermenêutica acerca da impossibilidade de conceituar ‘serviços’, prosseguiu (2008, p. 363):

São definidos por lei complementar, por expressa disposição constitucional, que deverá excluir do âmbito do ISS [...] os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações. Todavia a lei complementar não poderá distorcer o conceito de serviços utilizado pela Constituição, nem alargar seu campo de incidência de modo a alcançar o que é serviço.

Pode-se verificar que o conceito que restou sedimentado ao longo dos anos teve como base o ordenamento jurídico civilista, vez que a prestação de serviços comumente encontra-se plasmada numa relação de consumo que tem no Direito Privado seu alicerce.

Entendido assim como uma relação consumerista, e não possuindo conceituação direta na Constituição Federal, nem na própria Lei Complementar nº 116/2003, consegue-se inferir através do exercício de hermenêutica interdisciplinar com base no próprio Código de Direito do Consumidor, este traçando seu conceito da seguinte forma.

Art. 3º. [...] § 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Aqui o conceito de serviços seria interessante ao que pretendeu o novel legislador que por meio da Lei Complementar nº 157/2016, que fez incluir no rol de seu anexo a tributação pelo ISSQN dos serviços de streaming de vídeos.

Vale ressaltar que a expressão “qualquer atividade” tanto pode ser ampla, se analisada à luz dos novos elencos de serviços ou congêneres trazidos pela Lei Complementar nº 157/2016, quanto pode ser restritiva de “qualquer atividade” mais uma vez se for analisada sob a ótica do Direito Civil.

A norma do ISSQN incide sobre uma prestação de serviço derivativa de um negócio jurídico e nos dizeres da professora Natália Dácomo apud Castro et al. (2016, p. 731), esta lembra que:

 Pois não basta uma pessoa, física ou jurídica, começar a prestar serviço à outra sem o seu consentimento, pacto ou ajuste. Dessa forma, é necessário um acordo, um contrato verbal ou escrito, uma relação entre pessoas, física ou jurídica, para fazer nascer a prestação de serviços.

Insta diferenciar a “relação jurídica de prestar serviço” da “repercussão econômica de prestar serviço”, e conforme os autores acima, somente no primeiro caso é que terá o condão de autorizar o nascimento da obrigação tributária do ISSQN na medida em que é o evento previsto na norma constitucional.

Ainda de acordo com a professora Natália Dácomo (2016), existem duas correntes atualmente que se lançam nessa busca de explicar a natureza tributária derivada de “prestar” serviço.

A primeira doutrina denominada de “econômica”, onde prevalece o entendimento de que bastava a circulação de bens imateriais ou materiais para o nascimento da obrigação tributária. Esta corrente doutrinária, representada por Sérgio Pinto Martins, defende que o conceito de serviço compreende “a existência de transferência onerosa, por parte de uma pessoa a outra, de bem imaterial que se acha na etapa da movimentação econômica”. Neste caso, a prestação de serviço seria uma etapa da circulação econômica pela qual uma pessoa, em troca do pagamento de um preço, simplesmente realiza a transferência de um bem imaterial (serviço) a outra.

Por outro lado, a corrente denominada “jurídica”, até o momento entendida como majoritária, defende que a hipótese de incidência somente alcançará as prestações de serviços derivadas de uma obrigação de fazer, ou seja, oriundas de um negócio jurídico, esta corrente busca explicar o fenômeno do nascimento da obrigação tributária do ISSQN a partir de uma obrigação jurídica precedente.

O nascimento da obrigação, ou seja, a definição da ocorrência temporal do fato gerador do ISSQN é o que tem levado até hoje a doutrina majoritária ao entendimento de serviço como simplesmente uma obrigação de fazer.

Essa preocupação tem grande razão de ser quando se debate o aspecto temporal no Direito Tributário, vez que o fato gerador, o momento de sua ocorrência e demais aspectos têm grande repercussão principalmente no âmbito processual.

Até aqui respeitável tal posicionamento, pois, logo no art. 4º do CTN, este define que:

a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante a denominação e demais características [grifou-se].

Destarte, o momento do nascimento da obrigação por seu fato gerador pode ser que não seja atualmente suficiente para nortear as novas formas de consumo e, por conseguinte, as novas formas de oferecer serviços advindas das novas tecnologias, como são os serviços de streaming de vídeo e áudio.

Se da exceção feita pelo art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor, no que tange às relações trabalhistas, estas mesmas já sofreram novas formas de prestação dada a modernidade como a permissão de realização de teletrabalho, que dirá então a prestação de serviços pactuados entre pessoas, sejam físicas ou jurídicas, oriunda de novas formas de serviços de entretenimento disponibilizados pela internet.

Retomando. Não se pode deixar de mencionar o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que, a partir do julgamento do Recurso 116.221, 11/10/2000, abandonou o critério econômico citado anteriormente para filiar-se ao critério “jurídico” da obrigação tributária do ISSQN, sendo prevalecente a premissa desse julgado até os dias atuais.

TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. Imposto sobre serviços - Contrato de Locação. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas defnições são de observância inafastável¹.

Noutro norte, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que a lei complementar deveria fazer elenco, através de rol, enumerando assim os serviços, especificando um a um, em vez de somente definir de forma genérica o tipo de operação que poderia ser enquadrada como prestação de serviço, ou mesmo tentando conceituar serviço.

O professor Sabbag (2008, p. 1153), a esse respeito, preleciona.

A propósito da ideia de lucro, própria do serviço atingível pelo ISSQN “registre-se que, recentemente, o STF, em julgado de ação direta de inconstitucionalidade, concluiu que a prestação de serviço público concedidos, bem como de atividades estatais delegadas, por revelarem intuito lucrativo, submetem-se à incidência do ISSQN” (ADIN 3.089-DF - Relator Min. Carlos Aires Brito. Relator do Acórdão Min. Joaquim Barbosa, 13-02-2008.). O serviço é um bem intangível, imaterial e incorpóreo que se traduz no trabalho ou atividade economicamente mensurável a ser executado por uma pessoa em relação à outra. A prestação do serviço tributável pelo ISSQN é aquela in comercium, com um negócio jurídico subjacente, detentor de conotação econômica - até porque “a natureza incorpórea do serviço não impede que sua prestação tenha conteúdo econômico” .

Por tudo isso, caminhou bem o legislador, de modo a não fazer simplesmente conceituação do que seriam “serviços” para fins de tributação, mas sim, delegou à lei complementar da União estabelecer esse rol.

E ainda que, após a Emenda Constitucional nº 37/2002, haja inquinado de assim fazê-lo, a Lei Complementar nº 116/2003 não fixou a alíquota mínima.

E conforme aquela Emenda ao Texto Constitucional, essa lacuna só veio a ser preenchida no ano de 2016, com a Lei Complementar nº 157/2016, que acrescentou o art. 8º-A à Lei Complementar nº 116/2003:

a lei complementar nº 116/2003 passa a vigorar acrescida do seguinte art. 8º-A: a alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).

E conforme bem explanaram Alexandrino e Paulo (2014, p. 313-314):

Por fim, é oportuno esclarecer que o objetivo de todas essas alterações introduzidas pela EC 37/2002 foi evitar ou reduzir a denominada “guerra fiscal” entre Municípios, impedindo (ou dificultando) que um determinado Município utilize, de forma predatória, tributação excessivamente reduzida do ISS - alíquotas muito baixas, ou benefícios fiscais que tenham o mesmo resultado -, com o escopo de atrair para seu território empresas que, direta ou indiretamente, fortaleçam a economia local, em detrimento da situação econômica dos Municípios vizinhos.

Feitas essas considerações constatou-se até aqui que não existe na legislação de direito público uma conceituação do que seja serviço, e sim a que mais se aproxima atualmente é o conceito de ‘prestação’ de serviço, este subsumido à luz do direito das obrigações, mais precisamente às obrigações de fazer expendidas pela doutrina, e abraçada pelo entendimento jurisprudencial do STF.

Contudo, deixou a Suprema Corte entendida a necessidade de se fazer o rol, e assim caminharam as Leis Complementares nº.116/2003 e 157/2016, sendo certo que a segunda, em vez de dar uma definição teórica de serviços, optou por disciplinar Lista de Serviços tributáveis pelo ISSQN.

Assim, a lista anexa, que contém atualmente mais de 200 serviços, passa agora a ser acrescida de mais 10 serviços, sendo o item “1.09. Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem, e texto por meio da internet, respeitada a imunidade dos livros, jornais e periódicos” o permissivo legal para a cobrança do tributo dos atuais serviços que são a coqueluche como novo meio de diversão e entretenimento digital.

 

3. O aspecto material e temporal para caracterização do fato gerador do ISSQN

A delimitação trazida pelo art. 116 do Código Tributário Nacional circunscreveu o fato jurídico do imposto sobre serviços de qualquer natureza em duas situações, a material e a temporal.

Em seu aspecto material é considerada a concretude do fato gerador o momento no qual sejam verificadas as circunstâncias materiais que se fazem necessárias para que surjam os efeitos próprios.

Conforme preleciona Aires F. Barreto apud Castro et al. (2016, p. 733):

O que releva considerar não é a causa jurídica, mas a atividade material em que consiste o serviço.

Sendo assim este fato, podendo ser compreendido à luz do contrato, somente havendo prestação de serviço tributável ao analisar-se um contexto contratual.

A primeira característica vê-se surgida aqui nos serviços de streaming é a preexistência de um contrato, ainda que de adesão a seus pacotes fechados ou como são popularmente conhecidos, os ‘combos’.

Assim, se o serviço for considerado como um fato material, fatalmente seu aspecto temporal seria o momento da prestação do serviço.

Ou seja, se o aspecto material é a prestação do serviço, o aspecto temporal só pode ser único: o momento em que há a prestação do serviço.

Como todo e qualquer tributo, o ISSQN não permite sua incidência antes que ocorra seu fato gerador, sendo certo afirmar que todas as leis municipais que prevejam o aspecto material antes mesmo da ocorrência do aspecto temporal poderão ser, de plano, consideradas inconstitucionais.

A Lei Complementar nº 116/2003, que disciplinou o ISSQN nacionalmente, ao invés de definir teoricamente o que seja serviço - aqui compreensível sua complexidade, no mundo cada vez mais moderno - preferiu apenas fazer rol disciplinador por meio de lista de nomenclatura de serviços tributáveis pelo imposto.

Tal enumeração taxativa, ou exaustiva, estabeleceu numerus clausus de modo literal. Portanto até aqui também entendível que ao fazer constar novas hipóteses de serviços cuja modernidade de sua oferta não encontre respaldo no arcabouço teórico até então encontrado, admite-se a tributação dos serviços de streaming, vez que, homenageando o princípio da legalidade adstrito notadamente à matéria tributária, fez inserir a possibilidade dessa tributação.

 A propósito, o professor Kiyoshi Harada (2001, p. 136) discorre sobre a taxatividade do rol e mesmo sobre a interpretação a que se deve proceder:

A jurisprudência da Suprema Corte após algumas vacilações, acabou por acolher a tese majoritária na doutrina, no sentido da taxatividade da lista ressalvando contudo que a sua taxatividade não exclui a interpretação de que cada um de seus itens alcance maior ou menor compreensão, atingido serviços que, se não individualizados, devem considerar-se abrangidos.

Diante disso, a questão que se coloca é a de saber se alguns itens da lista comportam interpretação extensiva ou aplicação analógica, ou se deve conter-se nos estreitos limites da interpretação estrita ou restritiva.

Conforme já explanado, é bem certo que a nova celeuma dessa modernidade que são os serviços de streaming, de modo que a análise de tais formas interpretativas apenas terminariam por dar respaldo à cobrança.

 

4. O surgimento dos novos serviços pela internet

Streaming significa transmissão, dessa forma o streaming de vídeo ou áudio ocorre pela forma contínua e em formato digital por meio de provedores ou plataformas disponíveis na internet da disponibilização de tais conteúdos, sendo os mais populares Netflix, Spotify, YouTube (este último com conteúdos praticamente em sua totalidade gratuitos, mas possuindo também canais pagos em sua base).

No caso dos dois primeiros, Netflix e Spotify, o usuário tem acesso a conteúdo multimídia, como músicas e vídeos, de forma simples, sem que haja a principal quebra do direito autoral sem seu devido pagamento, ou seja, o download - a baixa/ descarga do conteúdo, portanto, este seguirá sempre disponível desde que haja o pagamento regular pelo seu acesso.

O consumo desse serviço de transmissão (streaming) tornou-se deveras popular justamente pela facilidade de seu acesso, que pode se dar através de um simples computador de mesa, aparelhos celulares, ou aparelhos televisores com funcionalidades de conexão à internet.

E por ser o serviço reconhecido como “amigo do direito autoral”, hoje é inclusive incentivado pela indústria fonográfca de modo a fomentar o setor.

Em 2016, quase metade da receita da indústria fonográfca mundial foi através dos serviços de streaming pagos pelos seus usuários.

E é esse crescimento, e cada vez maior consolidação do serviço, que chamou a atenção do fsco para ter sua participação tributária na fatia desse novíssimo mercado.

A Lei Complementar nº 157/2016 considerou então o streaming de vídeo como um serviço prestado pelas plataformas que o utilizam, e nessa toada, portanto, tributável.

Com isso, no ano de 2017 desencadeou nos municípios o alerta de arrecadação tributária do ISSQN sobre esse serviço, e estes entes federativos começaram uma verdadeira corrida para editar, aprovar e publicar suas leis, para que, pelos princípios da legalidade e anterioridade tributários, pudessem ser cobrados já a partir do ano de 2018.

Acontece que tal tributação para os que defendem essa hipótese, de que o streaming (transmissão) não é prestação de serviço, seria então inconstitucional, vez que o ISSQN é imposto que incide sobre a prestação de serviços, quando considerando assim como uma “obrigação de fazer”.

É certo que a Constituição Federal de 1988 deu aos municípios a possibilidade de tributar grande espectro de serviços, ressalvados aqueles serviços passíveis de tributação pelo ICMS, contudo relegou essa possibilidade às leis complementares fazerem elenco dos serviços a serem tributados, como visto no tópico 2.

Dessa forma, pelo surgimento de novas tecnologias, são compreensíveis o alvoroço e principalmente o debate quanto ao conceito, contudo até organizações como a Proteste, que defende os direitos do consumidor, manifestou que:

[...] tudo que é da nova economia e da economia digital nasce como free e na sequência vai ser tributado, não havendo motivo para que esses serviços não sejam tributados enquanto outros são”². 

Há quem entenda que nem mesmo a tributação, apesar de a Netflix ter sinalizado que não irá repassar ao consumidor o valor do tributo, venha a ser repassada ao consumidor após o alvoroço inicial.

Sofrendo posteriormente este repasse ainda assim não prejudicará essa forma de serviço, haja vista, conforme especialistas, tal cobrança não irá interromper a popularização dessas plataformas, pois sua base de usuários é bastante cativa.

Dessa forma, com alargada possibilidade de institucionalização de novos fatos geradores, o ISSQN constitui-se como a principal fonte de receita própria dos municípios brasileiros, excetuadas as transferências constitucionais obrigatórias oriundas da repartição tributária, compreensível até aqui a sanha tributária que animou, principalmente grandes municípios como Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, para se ter apenas como exemplos.

 

5. Conclusão

Analisando toda a explanação anterior, a inferência que se faz da nova forma de disponibilização de conteúdo de entretenimento digital.

Esta, mutatis mutandis, ainda se parece com a antiga locadora de vídeos, uma vez que nesta era possível ao consumidor chegar às suas dependências físicas e na prateleira escolher e entregar ao atendente o vídeo/áudio que gostaria de levar.

Ocorre que hodiernamente a única coisa que sofreu alteração é a inexistência de um atendente para fazer a entrega do material escolhido ao usuário. Essa escolha atualmente é feita diretamente na “prateleira” disponível online nas plataformas que ofereçam os serviços de streaming.

Imagine-se que não houvesse ainda os serviços de streaming, e as velhas locadoras, ao se modernizarem, fizessem a finalização da escolha de determinado filme em vídeo físico em pontos de autoatendimento, onde o consumidor registraria o que quisesse levar e pagasse tudo de forma automática, mesmo assim, haveria a incidência do ISSQN.

Logo, talvez não seja mais o momento de estar-se preso à conceituação de serviços até aqui trazida pela doutrina civilista, que assim o fez de forma indireta ao tratar das obrigações de fazer. Pois esta assim o fez para diferenciar as obrigações de fazer das obrigações de dar.

Ao usar corriqueiramente exemplos de prestação de serviços para conceituar as obrigações de fazer a doutrina civilista não sedimentou qualquer conceito de serviço.

Quando estes são analisados sob a ótica do Direito Tributário, pertencente ao Direito Público, e assim sendo o interesse público é o que deve ser privilegiado.

De todo modo, mais aplicável ao atual momento tecnológico vivido pela própria modernidade, caminhou bem, ou até mesmo sem querer talvez não o fez, ao deixar de conceituar o imposto sobre a prestação de serviços de qualquer natureza, não definindo exatamente o que seja serviço.

Preferiu assim fazê-lo por meio de rol, na forma de elenco ou lista que pode ter atividades incluídas, suprimidas ou alteradas, acompanhando assim o que o Direito precisa mais ter em foco, o fenômeno social e as formas como essa mesma sociedade vai alterando e inovando cada vez mais nas suas maneiras, tanto de produzir, consumir, como de prestar serviços.

O crescimento da oferta desse tipo de “serviço de entretenimento”, por assim dizer, não pode ficar alijado da mão arrecadatória estatal por conceitos teóricos que, como visto até aqui, não acompanharam os passos cada vez mais velozes e alargados da tecnologia.

O próprio legislador constitucional optou por não definir o conceito de serviço, assim sendo, qualquer definição doutrinária em voga até o presente momento também merece revisão, uma vez que a própria lei evolui ao incluir às hipóteses de cobrança do imposto os tais serviços de streaming de conteúdo multimídia (áudio, vídeo, texto e interatividade), algo inimaginável sequer de existência há bem pouco tempo.

Dessa forma, e por entender que a possibilidade de cobrança, pela sua inserção na lista da Lei Complementar nº 157/2016, já encontraria respaldo suficiente para tanto, uma vez que os serviços de streaming não se enquadram em nenhuma outra hipótese de incidência tributária abarcada por outros tributos.

 

  1. RODAPÉ RE nº 116.121, Relator Min.: OCTÁVIO GALLOTTI, Relator p/Acórdão: Min. Marco Aurélio Melo, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2000, DJ, 25/05/2001. PP-00017, EMENT VOL-02032-04 PP-00669.
  2. Disponível em: http://tecnologia.ig.com.br/2017-0104/imposto-netflix-inconstitucional.html. Acesso em: 8 jul. 2017.

 

Referências

Livros:

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 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Manual de Direito Tributário. 5. ed. rev. atual. Niterói: Impetus, 2007.

CASTRO, Eduardo M.L.; LUSTOZA, Helton Kramer; GOUVÊA, Marcus de Freitas. Tributos em Espécie. 3. ed. rev. ampliada e atualizada. Salvador: Juspodium, 2016.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 2, Teoria Geral das Obrigações. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

MELO, José Eduardo Soares de. ISS - Aspectos Teóricos e Práticos. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2008.

SABBAG, Eduardo de Moraes. Elementos do Direito. Direito Tributário. 9. ed. rev. amp. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

 

Legislação:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Texto compilado e atualizado de acordo com as Emendas Constitucionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 15 set. 2017.

BRASIL. Lei Complementar nº 116/2003, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ LCP/Lcp116.htm. Acesso em: 20 set. 2017.

BRASIL. Lei Complementar nº 157/2016, de 29 de dezembro de 2016. Altera a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa), e a Lei Complementar nº 63, de 11 de janeiro de 1990, que “dispõe sobre critérios e prazos de crédito das parcelas do produto da arrecadação de impostos de competência dos Estados e de transferências por estes recebidos, pertencentes aos Municípios, e dá outras providências”. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp157.htm. Acesso em: 22 set. 2017.

BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de junho de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis a União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em: 23 set. 2017.

 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L8078.htm. Acesso em: 19 set. 2017.

 

Sites:

http://tecnologia.ig.com.br/2017-01-04/ imposto-netflix-inconstitucional.html. Acesso em 8 jul. 2017.

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Hebertt Villarruel

Graduado em Direito e Ciências Contábeis pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Pós-graduado em Direito Público e Direito Tributário. Auditor público externo do Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul. Auditor público interno municipal por dez anos em Mato Grosso.

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